Após a
conquista da Euro 2008, o lendário Luis Aragonés assumiu o Fenerbahçe naquele
que seria seu último trabalho como técnico. Na equipe turca, uma das primeiras
alterações táticas promovidas pelo experiente treinador foi recuar o
meia-atacante Alex para ser o armador do time. Acostumado a atuar próximo à
meta adversária, o brasileiro, a princípio, estranhou a medida, mas logo ouviu
do treinador que a ideia era qualificar o passe no meio-campo do Fener. Era o mesmo princípio usado na Seleção
Espanhola sendo aplicado em seu novo clube.
A partir
daquele momento, Alex se tornou o armador do Fenerbahçe assim como Xavi era na Roja. Uma função tão bem representada
por nomes do calibre de Stefan Effenberg, Steven Gerrard e Frank Lampard e consolidada
nos pés de Luka Modric, Toni Kroos e Thiago Alcântara, mas que encontrou sua
quase extinção no Brasil. Logo no país que um dia aplaudiu a classe de Didi, Gérson
e Paulo Roberto Falcão. Hoje, dividimos o meio-campo entre jogadores que marcam
e os que atacam. No meio, abriu-se uma cratera. Não por acaso, vivemos uma das maiores
crises criativas de nossa história futebolística.
Taticamente,
a explicação não é das mais complexas. Nos anos 1980, nossos antigos ponteiros perderam
espaço para a inclusão de mais um meio-campista defensivo. Consequentemente, os
alas passaram a atuar por, praticamente, toda a faixa lateral do gramado.
Escrevo “praticamente”, porque suas subidas precisavam de uma cobertura que só dois
volantes poderiam realizar. Desse modo, nasceu o chamado 4-2-2-2 que ainda
serve como base para equivocadas ilustrações táticas na televisão e para
premiações como a Bola de Prata da revista Placar.
Tempos
depois, uma decisão que parecia acertada há 30 anos, tornou-se o grande dilema
do futebol brasileiro. Com a compactação dos times, ora uma regra mundial, o
que antes era uma zona de destruição passou a ser o centro das equipes. Isso
significa que o jogo passou a ser gerado a partir dos volantes e estes precisam
agir de forma intensa com e sem a bola. O crônico problema na transição
defensiva e na proposição da Seleção Brasileira nos últimos anos é resultado
direto desse ultrapassado conceito. Sem jogadores capazes de organizar de trás
e sem, aparentemente, haver treinamentos voltados para sanar essa deficiência, a
solução encontrada foi a mais pobre possível: Lançamentos diretos desde os
zagueiros. Não por acaso, raros foram os lances que obtiveram êxito na Copa.
Num primeiro
momento, a convocação realizada pelo técnico Dunga na última terça-feira
segue o antigo modelo. Dos quatro volantes chamados, somente Fernandinho se
aproxima da figura de um armador. Apesar de ter um passe correto, Luiz Gustavo
é, basicamente, um marcador. Ramires é um condutor de bola e Elias pode ser
descrito como um volante de infiltração. Na prática, a organização seria
realizada por Oscar e Philippe Coutinho, se este jogar. Contudo, ambos atuam,
prioritariamente, como meia-atacantes, oferecendo o último passe. Não são
construtores de fato. No Chelsea e no Liverpool, os principais armadores são
Fábregas e Gerrard, respectivamente.
Entre todos
os jogadores brasileiros nenhum se encaixa melhor na definição de armador do
que Paulo Henrique Ganso. Dotado de uma visão de jogo incomum e técnica
refinada, o meia do São Paulo consegue ditar o ritmo e descobrir companheiros
onde ninguém mais enxerga. Impregnado com a noção de que meias devem se
aproximar mais do gol, Muricy Ramalho costuma dizer em entrevistas que seu
comandado deve entrar mais vezes na área. Talvez não tenha percebido que o habitat de Ganso é justamente o
meio-campo. Para ele, finalizar em área deveria ser muito mais uma situação
dentro de determinados lances do que uma obrigação frequente. Suas maiores
qualidades sempre se mostraram mais úteis no meio-campo, construindo jogadas.
Em seu início
de carreira, Andrea Pirlo foi um meia-atacante apenas razoável. Não tinha
velocidade e habilidade para se livrar dos marcadores, embora tivesse muita
técnica. Um dia, sem poder contar com o lesionado Fernando Redondo, Carlo
Ancelotti perguntou se Pirlo não gostaria de fazer um teste na função. E o
mundo conheceu um dos maiores registas da história. Todavia, como bem define o jornalista André Rocha, o conceito de meio-campista ainda não chegou ao
Brasil. Muitos que não veem a hipótese de Ganso atuar mais recuado possivelmente
não sabem que o meia foi o líder de desarmes do Tricolor por um bom tempo. A
contribuição defensiva existe, o que não existe é a compreensão de que estamos
desperdiçando um potencial craque tentado transformá-lo em algo que ele não é. Enquanto
esse entendimento não acontece, continuamos a ver um deserto de ideias no
círculo central.
Coluna escrita originalmente para o site Doentes por Futebol.
Imagem: Alexandre
Battibugli/Placar
2 comentários:
Penso que Ganso não precisa necessariamente jogar, e principalmente ser cobrado, como um meia goleador, que marque em todo o jogo. Ele é muito mais um antigo camisa 8, como tínhamos no passado, aquele que constrói a jogada.
Em termos atuais sempre imaginei que ele poderia atuar mais ou menos como Xavi, Pirlo ou mesmo Schweinsteiger, fazem em suas equipes. Construindo o jogo do time a partir de uma linha próxima aos volantes e, além de ser protegido por eles, poder se movimentar e aparecer como elemento surpresa na frente, vindo de trás.
Até entendo que o Muricy tomou uma medida interessante para fortalecer a defesa são paulina, que não é um primor de qualidade técnica. Quando o time não têm a bola, ele e Kaká marcam pelos lados e ajudam na recomposição da equipe. Talvez não seja o ideal para quem imagina um futebol mais fluido, mas analisando o atual elenco do São Paulo foi uma forma encontrada para que o time parasse de ser tão vulnerável como vinha sendo. Mas aí fecho com o que costuma dizer o Tostão. Os dois não se anulam e sim, sem completam. Além disso acho que o Ganso não pode ser analisado apenas com a medida que era usada em 2010, ele sofre um pouco ainda por uma expectativa exagerada.
Sobre o deserto que temos em nosso país, em termos de qualidade e jogadores nessa posição, concordo plenamente com você.
É exatamente o que eu penso sobre Ganso, Alexandre. Ele sempre foi um 8, muito mais do que um 10. 10 é o Kaká.
Ganso pode ser o primeiro de uma leva de meio-campistas que o Brasil parou de "fabricar". Nunca será um leão, mas sabe marcar. E é um ótimo construtor. Como Muricy encontrou um bom lugar para ele, não sou eu que vai contestá-lo no SPFC. Mas, na Seleção, acredito firmemente que Dunga deveria testá-lo numa função semelhante a que Paulinho exerceu. Se funcionar, é possível que a questão da transição se torne um problema do passado.
Abraço.
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