domingo, 24 de agosto de 2014

O rei do deserto


Após a conquista da Euro 2008, o lendário Luis Aragonés assumiu o Fenerbahçe naquele que seria seu último trabalho como técnico. Na equipe turca, uma das primeiras alterações táticas promovidas pelo experiente treinador foi recuar o meia-atacante Alex para ser o armador do time. Acostumado a atuar próximo à meta adversária, o brasileiro, a princípio, estranhou a medida, mas logo ouviu do treinador que a ideia era qualificar o passe no meio-campo do Fener. Era o mesmo princípio usado na Seleção Espanhola sendo aplicado em seu novo clube.

A partir daquele momento, Alex se tornou o armador do Fenerbahçe assim como Xavi era na Roja. Uma função tão bem representada por nomes do calibre de Stefan Effenberg, Steven Gerrard e Frank Lampard e consolidada nos pés de Luka Modric, Toni Kroos e Thiago Alcântara, mas que encontrou sua quase extinção no Brasil. Logo no país que um dia aplaudiu a classe de Didi, Gérson e Paulo Roberto Falcão. Hoje, dividimos o meio-campo entre jogadores que marcam e os que atacam. No meio, abriu-se uma cratera. Não por acaso, vivemos uma das maiores crises criativas de nossa história futebolística.

Taticamente, a explicação não é das mais complexas. Nos anos 1980, nossos antigos ponteiros perderam espaço para a inclusão de mais um meio-campista defensivo. Consequentemente, os alas passaram a atuar por, praticamente, toda a faixa lateral do gramado. Escrevo “praticamente”, porque suas subidas precisavam de uma cobertura que só dois volantes poderiam realizar. Desse modo, nasceu o chamado 4-2-2-2 que ainda serve como base para equivocadas ilustrações táticas na televisão e para premiações como a Bola de Prata da revista Placar.

Tempos depois, uma decisão que parecia acertada há 30 anos, tornou-se o grande dilema do futebol brasileiro. Com a compactação dos times, ora uma regra mundial, o que antes era uma zona de destruição passou a ser o centro das equipes. Isso significa que o jogo passou a ser gerado a partir dos volantes e estes precisam agir de forma intensa com e sem a bola. O crônico problema na transição defensiva e na proposição da Seleção Brasileira nos últimos anos é resultado direto desse ultrapassado conceito. Sem jogadores capazes de organizar de trás e sem, aparentemente, haver treinamentos voltados para sanar essa deficiência, a solução encontrada foi a mais pobre possível: Lançamentos diretos desde os zagueiros. Não por acaso, raros foram os lances que obtiveram êxito na Copa.
Num primeiro momento, a convocação realizada pelo técnico Dunga na última terça-feira segue o antigo modelo. Dos quatro volantes chamados, somente Fernandinho se aproxima da figura de um armador. Apesar de ter um passe correto, Luiz Gustavo é, basicamente, um marcador. Ramires é um condutor de bola e Elias pode ser descrito como um volante de infiltração. Na prática, a organização seria realizada por Oscar e Philippe Coutinho, se este jogar. Contudo, ambos atuam, prioritariamente, como meia-atacantes, oferecendo o último passe. Não são construtores de fato. No Chelsea e no Liverpool, os principais armadores são Fábregas e Gerrard, respectivamente.

Entre todos os jogadores brasileiros nenhum se encaixa melhor na definição de armador do que Paulo Henrique Ganso. Dotado de uma visão de jogo incomum e técnica refinada, o meia do São Paulo consegue ditar o ritmo e descobrir companheiros onde ninguém mais enxerga. Impregnado com a noção de que meias devem se aproximar mais do gol, Muricy Ramalho costuma dizer em entrevistas que seu comandado deve entrar mais vezes na área. Talvez não tenha percebido que o habitat de Ganso é justamente o meio-campo. Para ele, finalizar em área deveria ser muito mais uma situação dentro de determinados lances do que uma obrigação frequente. Suas maiores qualidades sempre se mostraram mais úteis no meio-campo, construindo jogadas.

Em seu início de carreira, Andrea Pirlo foi um meia-atacante apenas razoável. Não tinha velocidade e habilidade para se livrar dos marcadores, embora tivesse muita técnica. Um dia, sem poder contar com o lesionado Fernando Redondo, Carlo Ancelotti perguntou se Pirlo não gostaria de fazer um teste na função. E o mundo conheceu um dos maiores registas da história. Todavia, como bem define o jornalista André Rocha, o conceito de meio-campista ainda não chegou ao Brasil. Muitos que não veem a hipótese de Ganso atuar mais recuado possivelmente não sabem que o meia foi o líder de desarmes do Tricolor por um bom tempo. A contribuição defensiva existe, o que não existe é a compreensão de que estamos desperdiçando um potencial craque tentado transformá-lo em algo que ele não é. Enquanto esse entendimento não acontece, continuamos a ver um deserto de ideias no círculo central.
Coluna escrita originalmente para o site Doentes por Futebol.
Imagem: Alexandre Battibugli/Placar

2 comentários:

Alexandre Rodrigues Alves disse...

Penso que Ganso não precisa necessariamente jogar, e principalmente ser cobrado, como um meia goleador, que marque em todo o jogo. Ele é muito mais um antigo camisa 8, como tínhamos no passado, aquele que constrói a jogada.
Em termos atuais sempre imaginei que ele poderia atuar mais ou menos como Xavi, Pirlo ou mesmo Schweinsteiger, fazem em suas equipes. Construindo o jogo do time a partir de uma linha próxima aos volantes e, além de ser protegido por eles, poder se movimentar e aparecer como elemento surpresa na frente, vindo de trás.

Até entendo que o Muricy tomou uma medida interessante para fortalecer a defesa são paulina, que não é um primor de qualidade técnica. Quando o time não têm a bola, ele e Kaká marcam pelos lados e ajudam na recomposição da equipe. Talvez não seja o ideal para quem imagina um futebol mais fluido, mas analisando o atual elenco do São Paulo foi uma forma encontrada para que o time parasse de ser tão vulnerável como vinha sendo. Mas aí fecho com o que costuma dizer o Tostão. Os dois não se anulam e sim, sem completam. Além disso acho que o Ganso não pode ser analisado apenas com a medida que era usada em 2010, ele sofre um pouco ainda por uma expectativa exagerada.

Sobre o deserto que temos em nosso país, em termos de qualidade e jogadores nessa posição, concordo plenamente com você.

Michel Costa disse...

É exatamente o que eu penso sobre Ganso, Alexandre. Ele sempre foi um 8, muito mais do que um 10. 10 é o Kaká.
Ganso pode ser o primeiro de uma leva de meio-campistas que o Brasil parou de "fabricar". Nunca será um leão, mas sabe marcar. E é um ótimo construtor. Como Muricy encontrou um bom lugar para ele, não sou eu que vai contestá-lo no SPFC. Mas, na Seleção, acredito firmemente que Dunga deveria testá-lo numa função semelhante a que Paulinho exerceu. Se funcionar, é possível que a questão da transição se torne um problema do passado.

Abraço.